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Jurista americano compara liberdade de expressão no Brasil e nos EUA
Leonardo Desideri
15 - 19 minutes

Os Estados Unidos são tradicionalmente vistos como uma nação onde a liberdade de expressão tem uma proteção robusta na lei. Os desafios que a sociedade americana enfrenta nos últimos tempos em relação a esse direito, contudo, não são tão diferentes do que ocorre no Brasil, segundo Todd Henderson, especialista em Direito Societário.

"Acho que enfrentamos muitos dos mesmos problemas e, quando olho para os casos dos Estados Unidos e vejo os casos no Brasil… Há alguns precedentes que são piores de algumas maneiras, mas não tenho certeza de que é tão diferente", afirma o jurista, que participará nos dias 27 e 28 de setembro do evento "Liberdade de Expressão: o Debate Essencial", organizado pela Gazeta do Povo e pelo Ranking dos Políticos e conta com o apoio do Instituto Liberal, Instituto dos Advogados do Paraná e Federação Nacional dos Institutos dos Advogados (Fenia).

Henderson é atualmente professor da escola de Direito da Universidade de Chicago e já deu consultoria para clientes do setor de telecomunicações e de alta tecnologia sobre questões regulatórias.

Em entrevista à Gazeta do Povo, ele comenta a dificuldade de alcançar um equilíbrio certo entre a liberdade de expressão e outras garantias constitucionais, critica o inquérito das fake news e fala sobre como as novas tecnologias complicaram a discussão sobre a livre expressão.

Confira as visões de Henderson sobre diferentes tópicos relacionados à liberdade de expressão no Brasil, nos EUA e no mundo.
O status quo e sua dificuldade de lidar com a internet

Henderson: Quando Gutenberg aperfeiçoou a imprensa, houve reações semelhantes na Europa: "Deus nos livre de que pessoas comuns possam ler a Bíblia". Era uma ameaça à classe sacerdotal. Quando o rádio surgiu… Muitos dos problemas de direito corporativo surgiram durante a Grande Depressão de 1929; entre as ações na época que levaram ao crash, uma das maiores foi a da empresa chamada RCA, a Radio Corporation of America. Era o Google, Microsoft e Apple da época. E a retórica no Congresso em torno do rádio e da maneira como o rádio ia desestabilizar o governo e causar todos esses problemas era a mesma.

Essa é uma questão incrivelmente difícil para a sociedade resolver. E essa questão está constantemente mudando, porque a tecnologia está possibilitando formas de comunicação que desafiam nossas expectativas estabelecidas. E, sempre que há mudança, inevitavelmente há rupturas no status quo. E há muitas pessoas que têm interesse em manter o status quo. Algumas dessas pessoas têm um interesse no status quo por causa de sua mentalidade. Elas pensam: "Essa mudança está tornando as coisas diferentes e isso me assusta". Algumas dessas pessoas têm um interesse monetário ou de poder para preferir o status quo.

Os editores de jornais não gostam do poder disruptivo da internet. Os funcionários do governo não gostam de novas maneiras de o público poder se comunicar sem o governo controlar. Períodos de transição tecnológica sempre geram isso.
O equilíbrio certo entre liberdade de expressão e outros direitos fundamentais

Henderson: Uma resposta simples seria: "há exceções à liberdade de discurso". Se alguém diz: "Vamos matar fulano", quando as pessoas vão e matam fulano, essa pessoa pode ser responsabilizada. Difamação, que é contar uma mentira sobre alguém conscientemente, com malícia, também é uma exceção. Então, admitimos exceções e provavelmente deveria haver exceção para certos tipos de discursos, como esses exemplos bem conhecidos de difamação ou incitação à violência.

Mas, em geral, a sociedade deveria considerar que os problemas relacionados à livre expressão devem ser solucionados com mais liberdade de expressão. Nada impede o governo de falar, nada impede as pessoas que são a favor das pessoas no governo de falar e de contra-atacar mentiras com a verdade. Essa é a verdadeira tradição, pelo menos nos Estados Unidos: o discurso deve ser confrontado com mais discurso.

Sabemos que sempre haverá realmente casos extremos, como uma ameaça real de violência física. Mas recordo Louis Brandeis, que foi um especialista em Direito Constitucional da administração Roosevelt – um pouco de esquerda, já que Roosevelt era mais ou menos como o nosso Lula. Brandeis falou: "Quando há tempo para expor por meio de discussão as falsidades e falácias, para evitar o mal pelo processo educativo, o remédio a ser aplicado é mais discurso, e não o silêncio forçado". Isso é chave. O remédio para mentiras é o discurso, não o silêncio. Mas a premissa é: "Quando há tempo para expor por meio de discussão…", isto é, pode haver emergências em que não há tempo suficiente para se ter uma discussão. Mas se não houver um risco iminente, como no caso de "vamos matar fulano", então as mentiras num vídeo do Bolsonaro – se forem mentiras, eu não faço ideia – têm de ser confrontadas com a verdade, não com o silenciamento.

E há duas razões para isso. A primeira é: quem decide o que é verdade? Se você entra no caminho de regular o discurso e o conteúdo do discurso, então você está dizendo que o governo, que é o regulador, decide.

O primeiro problema nisso é que não existe algo real como "o governo". As pessoas usam esse termo como "o Estado" ou "o governo", mas, claro, isso não existe. É apenas uma abstração, como uma ficção de nossa imaginação. Existem apenas pessoas. E as pessoas no governo são políticos, burocratas e constituintes, as pessoas que atendem às demandas.

Quando alguém diz que "o governo" ou "o Estado" deve decidir sobre o discurso, está na verdade dizendo que os políticos que elegemos, ou os juízes, ou os burocratas que temos, eles devem decidir. E, claro, se você é fã do Lula, pode ser que esteja tudo bem quando Lula está no poder. Porém, sua visão pode mudar drasticamente dependendo de quem estiver no poder. E se a sua opinião sobre o que deve ser permitido falar e o que não deve ser permitido depende de quem está no poder, então você não tem nenhum princípio. Você só está dizendo: "Eu quero silenciar meus inimigos". E isso é muito ruim.

O segundo ponto é a questão do que é a verdade. Muitas coisas nos Estados Unidos com as quais tivemos experiência recente e que foram rotuladas como desinformação ou notícias falsas, acabaram sendo reveladas como verdadeiras. Eram apenas fatos politicamente inconvenientes sobre, por exemplo, o fechamento de escolas devido à Covid-19 ou sobre como a Covid é transmitida. Então, isso é um problema real.
As semelhanças entre Brasil e EUA nas limitações à liberdade de expressão

Henderson: Temos um compromisso muito robusto com a liberdade de expressão. A Primeira Emenda da nossa Constituição é algo que todo americano valoriza e é realmente parte do tecido de nossa sociedade. Ainda assim, fizemos muitas das mesmas coisas que o Brasil fez. Pessoas que somente se expressaram foram condenadas a longos períodos de prisão por incitar os distúrbios em 6 de janeiro [de 2021, dia da invasão do Capitólio]. Algumas pessoas nem sequer estavam lá. O júri fez uma ligação entre o discurso deles e a conduta e concluiu que eles fizeram algo. É bastante chocante.

Empresas privadas baniram algumas pessoas em redes como o Twitter e restringiram o discurso. As pessoas que defenderam essas medidas disseram: "Bem, o Twitter é uma empresa privada, e a regra da Constituição não se aplica ao Twitter", o que é verdade. Mas, pelo que parece, o governo estava muito envolvido nisso, como mostram os Twitter Files.

Então, acho que enfrentamos muitos dos mesmos problemas e, quando olho para os casos dos Estados Unidos e vejo os casos no Brasil… Há alguns precedentes que são piores de algumas maneiras, mas não tenho certeza de que é tão diferente.

No caso do documentário [da Brasil Paralelo] "Quem mandou matar Bolsonaro?", pelo que pude entender, o tribunal disse: "Não publique isso na semana antes das eleições primárias". Isso não é muito diferente de um caso que tivemos aqui, em que algumas pessoas doaram dinheiro para um grupo que fez um documentário sobre a Hillary Clinton. E eles queriam mostrar esse documentário e havia um estatuto que proibia as pessoas de fazer certos tipos de contribuições de campanha dentro de um certo período antes de uma eleição. Portanto, 30 dias antes de uma eleição primária e 60 dias antes de uma eleição geral, você não podia ajudar esse tipo de discurso. Isso foi contestado, foi à Suprema Corte, e o tribunal disse que essa restrição era inconstitucional. A decisão foi muito contestada pelas pessoas de esquerda nos Estados Unidos, mesmo que tenha sido em defesa da liberdade de expressão.
Os riscos de uma Corte exercer restrições sobre o discurso

Henderson: Nós não temos o conceito de discurso de ódio aqui. Não há regulamentação governamental sobre discurso de ódio. Empresas podem regular o discurso de ódio. Se eu chamar um estudante de um termo ofensivo, meu empregador pode me demitir. Mas o governo não pode aprovar uma lei que torne ilegal eu usar um termo ofensivo. Sanções sociais são permitidas, mas o governo não pode aprovar uma lei sobre discurso de ódio.

Usamos o termo discurso de ódio constantemente em nossa sociedade. Usamos os termos fake news ou desinformação constantemente em nossa sociedade. Mas o governo é realmente limitado nisso. Devo dizer que isso, em teoria, soa muito bem. Mas, na prática, nem sempre é seguido.

Por exemplo, pouco antes das eleições, o New York Post publicou uma matéria dizendo que alguém havia encontrado um laptop do filho do então candidato Joe Biden. E as agências de inteligência dos Estados Unidos deliberadamente mentiram. [Henderson refere-se ao caso descrito nesta reportagem.] Então, essa linha entre o que o governo pode fazer é meio difusa, porque eram ex-agentes do governo tentando chegar ao poder.

Acho que aqui não estamos sempre vivendo de acordo com nossos princípios, mas, em princípio, se o Congresso tentasse aprovar uma lei que tornasse o discurso de ódio um crime, estou confiante de que a Suprema Corte diria que é inconstitucional.

O que realmente me preocupa no Brasil, primeiro de tudo, é esta coisa que vocês têm e nós não temos de juízes agirem afirmativamente ao invés de passivamente. Juízes aqui só recebem casos, ouvem um caso e tomam uma decisão que se aplica apenas às partes envolvidas. Vocês têm uma abordagem diferente. Nossa Suprema Corte nunca faria o tipo de coisa que os juízes de vocês fazem. E isso é problemático.

E, novamente, não estou tão familiarizado com o sistema de vocês, então estou relutante em dizer algo que caia na categoria de conselho. Mas minha reação aos juízes desempenhando um papel mais agressivo na regulamentação do discurso, minha objeção aos juízes assumindo esse papel, é que eles não são eleitos e, portanto, não são realmente responsáveis.

Se as pessoas não têm uma maneira de disciplinar os atores políticos, então há a chance de os atores políticos se descontrolarem.

Por outro lado, se o problema é que a maioria das pessoas está agindo de uma maneira ruim, juízes "não eleitos" fazendo política poderia ser algo bom. Vou dar um exemplo para que saibam o que quero dizer, caso não esteja claro. Muitos dos casos realmente notáveis nos Estados Unidos ocorreram quando nossa Suprema Corte agiu com coragem diante da oposição popular. Por exemplo, voltando ao período da Primeira Guerra Mundial, foram aprovadas leis em vários lugares que tornavam ilegal ensinar alemão, entre outras coisas. A Suprema Corte disse não, ainda que o povo apoiasse. Uma lei que criminalizou o financiamento do discurso político nos 30 dias antes de uma eleição também foi aprovada pelo Congresso. Eram leis promulgadas democraticamente. Mas, do meu ponto de vista, eram leis ruins. A Suprema Corte se manifestou contra elas, e uma das razões pela qual pôde fazer isso é porque não é eleita. Ela estava agindo, diríamos, como uma força contramajoritária.

Minha reação ao Supremo Tribunal Federal brasileiro desempenhando um papel mais agressivo na regulação do discurso depende em alguns aspectos dos valores dessa instituição e se aquilo que ela defende é bom ou não, em certo sentido. Se defende princípios de discurso e dá às pessoas liberdade, permitindo um tipo de mercado de ideias, então eu acho que seria uma coisa boa. No meu ponto de vista, se o Legislativo brasileiro estivesse aprovando várias leis que criminalizam a crítica ao Lula, por exemplo, então eu acharia que o Supremo Tribunal ser agressivo e derrubar essas leis seria uma coisa boa.

Agora, o que está acontecendo parece ser o contrário: o Supremo está fazendo o trabalho do Legislativo e restringindo o discurso. Pessoalmente, acho isso ruim.
O inquérito das fake news e as investigações do STF por ofensas à próprio Corte

Henderson: [Henderson ri de surpresa ao ouvir o relato da reportagem sobre o tema.] Isso é ridículo! Venho de uma tradição legal na qual os juízes não agem. Na verdade, juízes só recebem. Conheci Sergio Moro. Jantei com ele em minha casa. Fiquei surpreso que um juiz estava conduzindo uma investigação, porque nos Estados Unidos não fazemos dessa forma; a polícia e os promotores lideram investigações e depois as levam aos juízes.

Quando os promotores são corruptos, o FBI investiga o caso de corrupção pública. Temos uma maneira diferente de abordar esse problema. Mas a ideia de um juiz iniciar um caso já é algo muito incomum para mim. Mas ter o Supremo Tribunal com esse poder parece ainda mais estranho. Ter um juiz de primeira instância que conduziria um caso como a Lava Jato ou algo assim, posso entender. Mas ter um tribunal de apelação, um tribunal cujo trabalho é julgar outros tribunais… Nos Estados Unidos chamamos isso de jurisdição original, como a jurisdição para decidir um caso que não tem tribunais inferiores decidindo.

É estranho, também, porque o juiz tem um conflito de interesse no caso. Nos Estados Unidos, esse juiz teria que se abster. Estranho que um juiz esteja fazendo isso, estranho que seja um juiz do Supremo Tribunal. As pessoas poderosas sempre vão querer proteger a si mesmas e seus interesses. Se você lhes der um pouco de poder, como ter uma força policial sob seu controle… Temos um ditado que diz: "Dê-lhes uma polegada e eles vão tomar uma milha", ou, se quiser, "dê-lhes um centímetro e eles vão tomar um quilômetro".

Acho que o verdadeiro problema aqui é, em teoria, a ideia de que o Supremo teria algum poder para regular o discurso e o comportamento das pessoas com relação ao tribunal, que está interessado em seu próprio poder. Eles [os juízes] têm uma visão de como a sociedade deveria ser estruturada. Ninguém os elegeu. Eles não são responsáveis perante ninguém. E, como eu disse, há um conflito nisso. Há tantas coisas insanas nisso.

E uma coisa é a tentativa de regular as redes sociais pelo Supremo, que eu acho terrível e sem fundamento legal, mas até compreensível, porque há essa nova tecnologia e as pessoas têm medo de novas tecnologias. Agora, investigar pessoas por dizerem, no aeroporto, que um juiz do Supremo é um desgraçado? Isso é loucura.
A importância da liberdade de expressão na busca pela verdade

Henderson: O Brasil não está sozinho nisso tudo. Muitas das coisas sobre as quais vocês falam também estão acontecendo aqui nos Estados Unidos. Só é um pouco diferente devido às diferentes circunstâncias.

Mas eu não quero que as pessoas pensem que se trata de um mal muito peculiar que aflige só o Brasil. A ideia de que "o problema são esses caras" é muito perigosa. Estamos tendo os mesmos problemas, e nossos "caras" são diferentes. São histórias diferentes, e estamos tendo os mesmos tipos de discussões e problemas. Eu acho realmente importante trazer a discussão para a questão dos princípios.

E queria terminar saindo um pouco da política: minha filha está começando a universidade em Chicago, e tivemos a cerimônia de abertura ontem. O presidente da universidade falou sobre a importância da livre investigação. Se olharmos para a história, para o modo como a verdade – e não me refiro à verdade política, mas a verdade verdadeira – foi sendo entendida, isso sempre dependeu de dar às pessoas a chance de desafiar a sabedoria aceita do mundo. E são sempre as minorias, os dissidentes e aqueles que são vistos como loucos que trouxeram mudanças benéficas para o mundo. E nós não podemos acabar com isso. Caso contrário, estamos condenados como civilização.

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