The Narrator on Nostr: **O batom e o justiçamento** *Editorial da Gazeta do Povo publicado em 24/03/2005* ...
**O batom e o justiçamento**
*Editorial da Gazeta do Povo publicado em 24/03/2005*
Com exceção de Cleriston Pereira da Cunha, que faleceu no presídio da Papuda apesar dos laudos atestando sua saúde frágil e dos pedidos do Ministério Público para que fosse solto, nenhum outro caso evidencia tanto a imoralidade e o arbítrio na resposta estatal aos atos de 8 de janeiro de 2023 quanto o da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos. O ministro relator Alexandre de Moraes, na sexta-feira, votou pela condenação de Débora a 14 anos, dos quais 1 ano e meio de detenção (necessariamente cumpridos em regime aberto ou semiaberto) e 12 anos e meio de reclusão (que podem começar a ser cumpridos em regime fechado); ela também terá de ajudar a pagar uma multa de R$ 30 milhões imposta a todos os condenados do 8 de janeiro. O julgamento na Primeira Turma está temporariamente suspenso após pedido de vista de Luiz Fux, mas antes disso o ministro Flávio Dino acompanhou o relator.
O que Débora fez de fato? Esteve na Praça dos Três Poderes em meio ao tumulto daquele dia, e escreveu a célebre frase “perdeu, mané” – imortalizada por Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF – na estátua A Justiça, localizada diante da sede do Supremo. Disso não há dúvida alguma, pois há provas documentais abundantes. Mas a Procuradoria-Geral da República foi muito além: imputou à cabeleireira, além do crime de deterioração de patrimônio tombado, os crimes de associação criminosa armada; abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; e dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima. Tudo isso, claro, sem produzir uma única evidência que ligasse Débora concretamente a qualquer um desses outros atos. Para encobrir sua inépcia no trabalho de individualizar as condutas, a PGR optou por denúncias genéricas mal amparadas na muleta do “crime multitudinário”, truque endossado por Moraes e pelos colegas que já votaram para condenar inúmeros outros réus do 8 de janeiro.
Sem isso, restou a Moraes apenas copiar e colar extensos trechos de outros votos que descrevem os acontecimentos de 8 de janeiro, ainda que a PGR não tenha oferecido nenhum elemento que ligasse Débora a esses episódios – por exemplo, não há nada afirmando que ela tenha invadido algum dos edifícios da Praça dos Três Poderes –, nem compartilhado imagens ou mensagens que aparecem no voto de Moraes. A PGR afirma, e Moraes aceita, que o fato de não haver mensagens no celular da cabeleireira referentes ao 8 de janeiro indica que ela “apagou e ocultou provas de sua intensa participação nos atos golpistas”, demonstrando “desprezo para com o Poder Judiciário e a ordem pública”. O ministro afirma que “a destruição de provas, nesse contexto, reforça a percepção de que havia algo a esconder” – em uma bizarra inversão do ônus da prova.
Para condenar Débora a 14 anos, portanto, restam as ilações – como a de que ela tentou derrubar o Estado de Direito “em unidade de desígnios com outras milhares de pessoas”, algo impossível de atestar –, e a transformação (digna de um Q, o personagem inventor dos livros e filmes de James Bond) de um batom em arma perigosíssima para “depor, por meio de violência e grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Só assim Moraes pode afirmar que “está comprovado, pelo teor do seu interrogatório policial e judicial” e “pelas provas juntadas aos autos”, que Débora teria cometido todos os crimes que a PGR lhe imputou, ainda que não haja nenhum trecho de depoimento, nem prova documental, que permita tirar essa conclusão para qualquer ato que não seja o “perdeu, mané” na estátua – facilmente removido no dia seguinte, aliás.
Por fim, e tão ou mais absurdo que impor a Débora uma pena que nem criminosos perigosíssimos costumam receber, é o enorme castigo imposto a uma mãe que permanece privada de ver os dois filhos, hoje com 7 e 10 anos. Débora, que é de Paulínia (SP), foi presa preventivamente em 17 de março de 2023; desde então, jamais saiu da cadeia. Ficou detida inicialmente em Rio Claro (SP), a 65 quilômetros de casa, mas chegou a ser transferida para um presídio ainda mais distante da família, em Tremembé (SP), a 125 km de sua cidade, antes de voltar a Rio Claro. Tudo isso apesar de haver jurisprudência do próprio STF garantindo a mães de filhos com até 12 anos o direito de trocar a prisão preventiva pela prisão domiciliar. Em vez disso, a PGR passou 400 dias sem oferecer denúncia contra a cabeleireira, violando todos os prazos legais, e Moraes a manteve na prisão ao longo desse tempo alegando que haveria “grave risco à ordem pública” caso ela fosse solta. Que risco seria esse, Moraes jamais explicou.
Além disso, já existem decisões de outros tribunais, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, ampliando o entendimento do STF para contemplar casos de mães que já cumprem pena definitiva, concedendo-lhes o benefício da prisão domiciliar. E, mesmo aceitando o argumento de Moraes de que a pena de Débora deve começar a ser cumprida em regime fechado, já que a condenação superaria oito anos, o fato é que a cabeleireira já está encarcerada há dois anos, ou 1/7 da pena que Moraes deseja lhe aplicar, quando o artigo 112, parágrafo 3.º, inciso III da Lei de Execução Penal permite a prisão domiciliar para a gestante ou mãe condenada, após o cumprimento de 1/8 da pena, requisito que a ré já cumpriu. Mas não seria surpreendente que o ministro negasse o benefício a Débora, invocando os incisos I e V do mesmo parágrafo, que vedam essa progressão de regime às mães no caso de crimes cometidos “com violência ou grave ameaça a pessoa” e integrantes de “organização criminosa” – ainda, ressalte-se, que a PGR não tenha sido capaz de produzir uma mísera evidência que comprovasse violência, ameaça ou ação organizada no caso de Débora, o que apenas reforça a facilidade com que os órgãos de persecução são capazes de destruir vidas e famílias sem prova alguma.
Violação do princípio do juiz natural (pois Débora não tem prerrogativa de foro), desprezo pela individualização da conduta na denúncia e nos votos pela condenação, falta de provas ligando a ré aos crimes que lhe são atribuídos, penas totalmente desproporcionais, manutenção desnecessária da prisão preventiva em desacordo com a jurisprudência do próprio STF em relação a mães de crianças pequenas, julgamento em plenário virtual sem garantia nenhuma de que as alegações da defesa serão ouvidas – não exageramos ao dizer que todas as regras penais e processuais penais têm sido atropeladas neste e em outros julgamentos do 8 de janeiro. Estamos assistindo a um novo justiçamento, um linchamento com toques de sadismo; o que vem sendo feito está muito longe de ser chamado de justiça.
Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/cabeleireira-debora-voto-alexandre-de-moraes-condenacao/
*Editorial da Gazeta do Povo publicado em 24/03/2005*
Com exceção de Cleriston Pereira da Cunha, que faleceu no presídio da Papuda apesar dos laudos atestando sua saúde frágil e dos pedidos do Ministério Público para que fosse solto, nenhum outro caso evidencia tanto a imoralidade e o arbítrio na resposta estatal aos atos de 8 de janeiro de 2023 quanto o da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos. O ministro relator Alexandre de Moraes, na sexta-feira, votou pela condenação de Débora a 14 anos, dos quais 1 ano e meio de detenção (necessariamente cumpridos em regime aberto ou semiaberto) e 12 anos e meio de reclusão (que podem começar a ser cumpridos em regime fechado); ela também terá de ajudar a pagar uma multa de R$ 30 milhões imposta a todos os condenados do 8 de janeiro. O julgamento na Primeira Turma está temporariamente suspenso após pedido de vista de Luiz Fux, mas antes disso o ministro Flávio Dino acompanhou o relator.
O que Débora fez de fato? Esteve na Praça dos Três Poderes em meio ao tumulto daquele dia, e escreveu a célebre frase “perdeu, mané” – imortalizada por Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF – na estátua A Justiça, localizada diante da sede do Supremo. Disso não há dúvida alguma, pois há provas documentais abundantes. Mas a Procuradoria-Geral da República foi muito além: imputou à cabeleireira, além do crime de deterioração de patrimônio tombado, os crimes de associação criminosa armada; abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; e dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima. Tudo isso, claro, sem produzir uma única evidência que ligasse Débora concretamente a qualquer um desses outros atos. Para encobrir sua inépcia no trabalho de individualizar as condutas, a PGR optou por denúncias genéricas mal amparadas na muleta do “crime multitudinário”, truque endossado por Moraes e pelos colegas que já votaram para condenar inúmeros outros réus do 8 de janeiro.
Sem isso, restou a Moraes apenas copiar e colar extensos trechos de outros votos que descrevem os acontecimentos de 8 de janeiro, ainda que a PGR não tenha oferecido nenhum elemento que ligasse Débora a esses episódios – por exemplo, não há nada afirmando que ela tenha invadido algum dos edifícios da Praça dos Três Poderes –, nem compartilhado imagens ou mensagens que aparecem no voto de Moraes. A PGR afirma, e Moraes aceita, que o fato de não haver mensagens no celular da cabeleireira referentes ao 8 de janeiro indica que ela “apagou e ocultou provas de sua intensa participação nos atos golpistas”, demonstrando “desprezo para com o Poder Judiciário e a ordem pública”. O ministro afirma que “a destruição de provas, nesse contexto, reforça a percepção de que havia algo a esconder” – em uma bizarra inversão do ônus da prova.
Para condenar Débora a 14 anos, portanto, restam as ilações – como a de que ela tentou derrubar o Estado de Direito “em unidade de desígnios com outras milhares de pessoas”, algo impossível de atestar –, e a transformação (digna de um Q, o personagem inventor dos livros e filmes de James Bond) de um batom em arma perigosíssima para “depor, por meio de violência e grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Só assim Moraes pode afirmar que “está comprovado, pelo teor do seu interrogatório policial e judicial” e “pelas provas juntadas aos autos”, que Débora teria cometido todos os crimes que a PGR lhe imputou, ainda que não haja nenhum trecho de depoimento, nem prova documental, que permita tirar essa conclusão para qualquer ato que não seja o “perdeu, mané” na estátua – facilmente removido no dia seguinte, aliás.
Por fim, e tão ou mais absurdo que impor a Débora uma pena que nem criminosos perigosíssimos costumam receber, é o enorme castigo imposto a uma mãe que permanece privada de ver os dois filhos, hoje com 7 e 10 anos. Débora, que é de Paulínia (SP), foi presa preventivamente em 17 de março de 2023; desde então, jamais saiu da cadeia. Ficou detida inicialmente em Rio Claro (SP), a 65 quilômetros de casa, mas chegou a ser transferida para um presídio ainda mais distante da família, em Tremembé (SP), a 125 km de sua cidade, antes de voltar a Rio Claro. Tudo isso apesar de haver jurisprudência do próprio STF garantindo a mães de filhos com até 12 anos o direito de trocar a prisão preventiva pela prisão domiciliar. Em vez disso, a PGR passou 400 dias sem oferecer denúncia contra a cabeleireira, violando todos os prazos legais, e Moraes a manteve na prisão ao longo desse tempo alegando que haveria “grave risco à ordem pública” caso ela fosse solta. Que risco seria esse, Moraes jamais explicou.
Além disso, já existem decisões de outros tribunais, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, ampliando o entendimento do STF para contemplar casos de mães que já cumprem pena definitiva, concedendo-lhes o benefício da prisão domiciliar. E, mesmo aceitando o argumento de Moraes de que a pena de Débora deve começar a ser cumprida em regime fechado, já que a condenação superaria oito anos, o fato é que a cabeleireira já está encarcerada há dois anos, ou 1/7 da pena que Moraes deseja lhe aplicar, quando o artigo 112, parágrafo 3.º, inciso III da Lei de Execução Penal permite a prisão domiciliar para a gestante ou mãe condenada, após o cumprimento de 1/8 da pena, requisito que a ré já cumpriu. Mas não seria surpreendente que o ministro negasse o benefício a Débora, invocando os incisos I e V do mesmo parágrafo, que vedam essa progressão de regime às mães no caso de crimes cometidos “com violência ou grave ameaça a pessoa” e integrantes de “organização criminosa” – ainda, ressalte-se, que a PGR não tenha sido capaz de produzir uma mísera evidência que comprovasse violência, ameaça ou ação organizada no caso de Débora, o que apenas reforça a facilidade com que os órgãos de persecução são capazes de destruir vidas e famílias sem prova alguma.
Violação do princípio do juiz natural (pois Débora não tem prerrogativa de foro), desprezo pela individualização da conduta na denúncia e nos votos pela condenação, falta de provas ligando a ré aos crimes que lhe são atribuídos, penas totalmente desproporcionais, manutenção desnecessária da prisão preventiva em desacordo com a jurisprudência do próprio STF em relação a mães de crianças pequenas, julgamento em plenário virtual sem garantia nenhuma de que as alegações da defesa serão ouvidas – não exageramos ao dizer que todas as regras penais e processuais penais têm sido atropeladas neste e em outros julgamentos do 8 de janeiro. Estamos assistindo a um novo justiçamento, um linchamento com toques de sadismo; o que vem sendo feito está muito longe de ser chamado de justiça.
Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/cabeleireira-debora-voto-alexandre-de-moraes-condenacao/