No labirinto da tirania
No labirinto da tirania
Artigo de Francisco Razzo publicado em 05/02/2025 na Gazeta do Povo
Franz Kafka morreu sem imaginar que seu nome se tornaria um adjetivo. Hoje, no direito, tudo o que é confuso, burocrático ou absurdo ganha seu epíteto. Entre suas obras, O Processo é aquela que melhor representa o espírito de nossa época com inquietante precisão.
Josef K., o protagonista, é acusado de um crime indefinido por um tribunal opaco, cuja lógica escapa à razão. Sua condenação é inevitável, não pela culpa, mas pela própria natureza labiríntica do sistema.
Nosso ordenamento jurídico, em muitos aspectos, parece escrito por Kafka. Decisões brotam de critérios movediços, distantes do princípio fundamental da isonomia. Regras elásticas, definições ambíguas e justiça subjetiva substituíram a promessa de igualdade perante a lei. Quando se busca coerência, depara-se com o absurdo; quando se exige neutralidade, surge o arbítrio disfarçado de narrativa da reparação histórica.
Um exemplo recente: o Superior Tribunal de Justiça brasileiro decidiu que injúria racial contra brancos não configura crime. Só há racismo contra grupos em "posição social inferior". Assim, a cor da pele determina quem merece proteção legal. Ofensas a negros são tratadas como ataques à dignidade humana; a brancos, como legítima defesa. O Estado, nessa equação, assume o papel de medidor de dores subjetivas, calibrado por hierarquias identitárias cujo propósito é a vingança. Faça-se de vítima e tudo é permitido.
O argumento repousa no conceito de racismo estrutural – teoria que, ao diagnosticar desigualdades históricas, transformou-se em dogma jurídico. Segundo essa visão, brancos são "beneficiários históricos e estruturais" de privilégios, logo, incapazes de sofrer racismo. A premissa, porém, é autorreferente: não admite contraditório, apenas reforça-se através de uma retórica que mistura ressentimento e engenharia social. O resultado é um direito flutuante, onde o crime deixa de ser fato objetivo para tornar-se interpretação política.
A ativista norte-americana Angela Davis foi uma das vozes que abriram caminho para essa inversão. Na sua concepção de justiça racial, não se trata apenas de reparar injustiças. Mais do que isso, trata-se de reorganizar o próprio conceito de justiça. Se o sistema sempre operou em favor de certos grupos, ele deve agora inverter o mecanismo de poder. Criar compensações. Ajustar as contas do passado, mesmo que à custa da isonomia presente e perene entre todos os seres humanos. A justiça, então, deixa de ser um princípio universal e se torna um mecanismo de reparação histórica, de vingança.
A ironia é trágica: na tentativa de corrigir discriminações, o sistema cria novas assimetrias. Ao judicializar hierarquias de opressão, a lei deixa de ser cega e passa a ter preferências por identidades. Se ontem queimavam estátuas em nome da justiça histórica, hoje relativiza-se a inviolabilidade humana – e amanhã? O perigo está na normalização de um direito seletivo, onde a dignidade varia conforme o grupo.
Nesse contexto narrativo, um assassinato de rico por pobre poderia ser atenuado por inúmeros motivos. Um furto por "marginalizados históricos", descriminalizado e tratado como reparação social. O precedente é perigoso: quando a lei perde universalidade, abre-se o caminho para a tirania do relativismo.
Sistemas jurídicos que abandonam a universalidade degeneram em instrumentos de arbitrariedade, já denunciava Kafka. O direito natural, embora hoje contestado por correntes positivistas e identitárias, nasce da premissa de que certos princípios – como igualdade, liberdade e dignidade – são inerentes à condição humana, não concessões do Estado. Esses valores não são condicionados por contextos históricos e agendas políticas.
Quando o direito positivo rompe com essa universalidade, ele opera por cálculos de poder ou reparações coletivas. Ganha o mais forte. A lei não pode ser uma "engenhoca" ajustável a conveniências, pois sua força está na capacidade de representar um mínimo ético comum. A isonomia não significa ignorar desigualdades. Significa garantir que a resposta a elas não recrie exclusões. Eu só consigo dizer, hoje que o racismo foi uma aberração, porque o critério da dignidade é atemporal.
O caso brasileiro ilustra o risco de se abandonar o racional em favor do intuitivo sentimentalista no direito. A intuição pode identificar injustiças históricas, mas só a razão – guiada por princípios universais – evita que a busca por reparação se transforme em nova opressão. O desafio é equilibrar sensibilidade contextual com a imparcialidade da lei. Sem esse equilíbrio, caímos no mesmo absurdo que Kafka denunciava: um processo sem sentido, onde a justiça se perde no labirinto da tirania.
Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/francisco-razzo/racismo-estrutural-e-o-labirinto-de-tirania-da-justica/
Artigo de Francisco Razzo publicado em 05/02/2025 na Gazeta do Povo
Franz Kafka morreu sem imaginar que seu nome se tornaria um adjetivo. Hoje, no direito, tudo o que é confuso, burocrático ou absurdo ganha seu epíteto. Entre suas obras, O Processo é aquela que melhor representa o espírito de nossa época com inquietante precisão.
Josef K., o protagonista, é acusado de um crime indefinido por um tribunal opaco, cuja lógica escapa à razão. Sua condenação é inevitável, não pela culpa, mas pela própria natureza labiríntica do sistema.
Nosso ordenamento jurídico, em muitos aspectos, parece escrito por Kafka. Decisões brotam de critérios movediços, distantes do princípio fundamental da isonomia. Regras elásticas, definições ambíguas e justiça subjetiva substituíram a promessa de igualdade perante a lei. Quando se busca coerência, depara-se com o absurdo; quando se exige neutralidade, surge o arbítrio disfarçado de narrativa da reparação histórica.
Um exemplo recente: o Superior Tribunal de Justiça brasileiro decidiu que injúria racial contra brancos não configura crime. Só há racismo contra grupos em "posição social inferior". Assim, a cor da pele determina quem merece proteção legal. Ofensas a negros são tratadas como ataques à dignidade humana; a brancos, como legítima defesa. O Estado, nessa equação, assume o papel de medidor de dores subjetivas, calibrado por hierarquias identitárias cujo propósito é a vingança. Faça-se de vítima e tudo é permitido.
O argumento repousa no conceito de racismo estrutural – teoria que, ao diagnosticar desigualdades históricas, transformou-se em dogma jurídico. Segundo essa visão, brancos são "beneficiários históricos e estruturais" de privilégios, logo, incapazes de sofrer racismo. A premissa, porém, é autorreferente: não admite contraditório, apenas reforça-se através de uma retórica que mistura ressentimento e engenharia social. O resultado é um direito flutuante, onde o crime deixa de ser fato objetivo para tornar-se interpretação política.
A ativista norte-americana Angela Davis foi uma das vozes que abriram caminho para essa inversão. Na sua concepção de justiça racial, não se trata apenas de reparar injustiças. Mais do que isso, trata-se de reorganizar o próprio conceito de justiça. Se o sistema sempre operou em favor de certos grupos, ele deve agora inverter o mecanismo de poder. Criar compensações. Ajustar as contas do passado, mesmo que à custa da isonomia presente e perene entre todos os seres humanos. A justiça, então, deixa de ser um princípio universal e se torna um mecanismo de reparação histórica, de vingança.
A ironia é trágica: na tentativa de corrigir discriminações, o sistema cria novas assimetrias. Ao judicializar hierarquias de opressão, a lei deixa de ser cega e passa a ter preferências por identidades. Se ontem queimavam estátuas em nome da justiça histórica, hoje relativiza-se a inviolabilidade humana – e amanhã? O perigo está na normalização de um direito seletivo, onde a dignidade varia conforme o grupo.
Nesse contexto narrativo, um assassinato de rico por pobre poderia ser atenuado por inúmeros motivos. Um furto por "marginalizados históricos", descriminalizado e tratado como reparação social. O precedente é perigoso: quando a lei perde universalidade, abre-se o caminho para a tirania do relativismo.
Sistemas jurídicos que abandonam a universalidade degeneram em instrumentos de arbitrariedade, já denunciava Kafka. O direito natural, embora hoje contestado por correntes positivistas e identitárias, nasce da premissa de que certos princípios – como igualdade, liberdade e dignidade – são inerentes à condição humana, não concessões do Estado. Esses valores não são condicionados por contextos históricos e agendas políticas.
Quando o direito positivo rompe com essa universalidade, ele opera por cálculos de poder ou reparações coletivas. Ganha o mais forte. A lei não pode ser uma "engenhoca" ajustável a conveniências, pois sua força está na capacidade de representar um mínimo ético comum. A isonomia não significa ignorar desigualdades. Significa garantir que a resposta a elas não recrie exclusões. Eu só consigo dizer, hoje que o racismo foi uma aberração, porque o critério da dignidade é atemporal.
O caso brasileiro ilustra o risco de se abandonar o racional em favor do intuitivo sentimentalista no direito. A intuição pode identificar injustiças históricas, mas só a razão – guiada por princípios universais – evita que a busca por reparação se transforme em nova opressão. O desafio é equilibrar sensibilidade contextual com a imparcialidade da lei. Sem esse equilíbrio, caímos no mesmo absurdo que Kafka denunciava: um processo sem sentido, onde a justiça se perde no labirinto da tirania.
Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/francisco-razzo/racismo-estrutural-e-o-labirinto-de-tirania-da-justica/